quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Todo Mundo e Ninguém: Um Auto

Há um auto (auto é o nome que se dava, na idade média, a qualquer peça curta, de tema religioso ou profano), chamado o ''O Auto da Lusitana'' com uma crítica social muito forte, antiga mas também atual, sobre a conduta humana. Acredito que ele mereça a leitura de nossos amigos leitores.
O autor é Gil Vicente, homem considerado o pai do teatro português. Homem corajoso, ousado, inconformado; não aceitava a corrupção da igreja Católica, dos aristocratas, banqueiros que exploravam as pessoas emprestando dinheiro a juros extorsivos, os comerciantes que roubavam o povo, a corrupção pessoal de pessoas que não pregavam a Cristo, mas suas conveniências ou interesses pessoais. Enfim, um homem sincero, católico, que amava a pureza que a igreja deveria ter e a Deus.

Nesse trecho, aparecem quatro personagens: Berzebu ou Belzebu, Dinato (seu secretário), um homem chamado Todo o Mundo e outro chamado Ninguém.
Todo o Mundo e Ninguém entram em cena e começam a conversar. Sem saber são observados, por Belzebu ou Dinato, que registram tudo que ouvem para depois comunicar ao Diabo. [Notem como aqui é mostrado a não onisciência do Diabo].

Entra Todo mundo, homem como rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que se lhe perdeu; e logo após ele um homem, vestido como pobre. Este se chama ninguém e, diz:

Ninguém: Que andas tu aí buscando?
Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:  delas não posso achar, porém ando porfiando (Pofiar: Disputar para obter algo. No contexto do auto, obter por puro prazer e a qualquer custo (os fins justificam os meios)) por quão bom é porfiar.
Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro e sempre nisto me fundo. Nisto me fundo: É isso o que mais quero.
Ninguém: Eu hei nome Ninguém, e busco a consciência.
Belzebu: Esta é boa experiência: Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu: Que Ninguém busca consciência e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo o Mundo: Busco honra muito grande. Honra: Respeito pessoal, grande glória própria.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande Virtude: Disposição firme para o bem que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição nos acude:  escreve logo aí, a fundo, que busca honra Todo o Mundo e Ninguém busca virtude.
Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse? Mor: Maior
Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse [Notem que ele repete a mesma resposta que antes; isso demonstra a ênfase que o autor deu nesse aspecto da conduta humana: tudo quanto eu fizesse. glória própria, ser o homem ou a mulher seu próprio Deus]
Ninguém: E eu quem me repreendesse. [Ninguém representa o oposto: Sou pequeno e sempre falho. Como posso ser meu próprio Deus? Como alguém como eu poderia ser em cada cousa que errasse. louvado? O que eu preciso é ser repreendido por Deus.]
Belzebu: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Belzebu: Que quer em extremo grado Todo o Mundo ser louvado, e Ninguém ser repreendido.
Ninguém: Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é, a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito garrida: Muito garrida: Muito destaque. Belzebu está dizendo para Dinato que o ser humano é tão estúpido que não para pensar o quanto a vida é Todo o Mundo busca a vida é valiosa e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo: E mais queria o paraíso, sem mo Ninguém estorvar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve que Todo o Mundo quer paraíso e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar, e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo sem nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre, não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso e Ninguém diz a verdade.
Ninguém: Que mais buscas?
Todo o Mundo: Lisonjear. [Ou seja não quero ajudar ninguém com repreensões, advertências, conselhos; querer só bajular: você é bom, você é bonito, parabéns. Percebam que isso é mais sério do que aparenta a primeira vista. É nossa maior obrigação como amigos lutar para tirar os outros das trevas. E a repreensão amorosa, justa e sábia com o Espírito Santo, leva a pessoa para longe das trevas.]
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Belzebu: Escreve, ande lá, mano. ande lá, mano: Mãos a obra.
Dinato: Que me mandas assentar?
Belzebu: Põe aí mui declarado, não te fique no tinteiro: Todo o Mundo é lisonjeiro,  e Ninguém desenganado.

[Jorge]

Nenhum comentário:

Postar um comentário

E aí, o que achou?